A Verdade.
Texto de Rafael Wainstok
Eu pondero que a Verdade realizada
plenamente é a Justiça.
E a Justiça é como o Sol, o céu pode ficar
nublado por algum tempo, ocultando o Sol, mas, mais cedo ou mais tarde o Sol
brilhará sobre tudo e todos.
Estipula-se que Platão escreveu uma de
suas obras-primas, A República, no século quarto antes de Cristo, algo como 375
a.C.. A temática deste verdadeiro monumento literário, em linhas gerais, é uma
profunda reflexão sobre o que é a Justiça. Platão escrevia sob a forma de
diálogo, e neste contexto os personagens debatem sobre uma questão importante e
seus desdobramentos. A Justiça é um tema tão significativo, que neste diálogo
sobre ela, inúmeras situações vão se ramificar. Hoje vamos tratar de um aspecto
em especial, que anuncio como: a mulher guerreira ou guardiã.
Na República, Platão, com a intenção de
descobrir o que é a Justiça para um ser humano, entende que se ele pegar o
exemplo de uma cidade, que é muito maior do que um indivíduo, será mais fácil
analisar a questão, então se cria uma cidade imaginária e vão sendo tecidos
diversos experimentos racionais. Parte central do objetivo é chegar ao ideal de
uma cidade justa, o que permitiria entender também o ser humano justo. É
importante destacar que não se deve interpretar literalmente os raciocínios
propostos por Platão, contudo não vamos entrar em suas complexidades. Vamos
citar, em específico, que uma figura central na cidade ideal de Platão é o
guardião. O guardião precisa possuir a excelência da arte da guerra mas também
ter profunda sensibilidade filosófica para entender e apreciar o que está
guardando. Como alguém poderia ser eficiente em guardar algo que não
compreende? E, justamente relativamente a esta função de máxima importância, de
proteção da cidade justa, Platão diz que as mulheres que tiverem aptidão para a
arte da guerra devem participar também. Devem ser, ao lado dos guardiões,
guardiãs da Justiça. Na época de Platão e na sociedade grega, os direitos e o
papel das mulheres eram precários, e é por isso que ao anunciar esta ideia, de
que as mulheres poderiam e deveriam ocupar funções de grande importância na
cidade justa, Platão comparou a dificuldade do assunto com uma grande onda no
mar, isto é, uma grande força de oposição. Na República Platão não vê a mulher
e o homem como iguais, e se ponderarmos é claro que há diferenças, o ponto é
que tanto uma mulher quanto um homem, apesar de suas diferenças, podem ter
habilidade para a mesma função.
Platão nos diz que a mais alta posição da
cidade, a que a governa, deve ser ocupada por um filósofo. Entretanto não nos
enganemos, filósofo aqui designa um indivíduo iluminado pela Verdade e
realizador da Justiça. Não se trata de um intelectual conhecedor de livros e
doutrinas, mas de alguém que busca a Verdade e já compreendeu em nível prático
algo de sua realidade. Comparando com os termos usados no Ocultismo, os de
Iniciado e Adepto, o que Platão chama de filósofo, é algo como um Adepto. Pois
o Iniciado é aquele que passa a conhecer uma ideia nova enquanto o Adepto é
aquele que realiza esta ideia de forma plena. Portanto o filósofo na cidade
platônica representa o mais alto grau de esclarecimento e realização, e por
isso deve ocupar a posição mais alta, uma vez que é o mais apto. Neste ponto
também, Platão nos diz que a mulher poderia ocupar esta função, caso se
demonstrasse apta. Portanto aqui temos a ideia da mulher como guerreira,
guardiã e filósofa.
Como é de conhecimento comum, muitos
problemas e dificuldades ocorreram ao longo da história conhecida,
relativamente ao reconhecimento do valor, do direito e da realização da mulher
na sociedade humana. Portanto, o meu objetivo hoje é homenagear e resgatar a
memória de uma mulher de grande valor, conectada a nossa tradição esotérica e
ocultista. Que ao meu ver, de fato foi uma guerreira em sentido espiritual,
poderosa guardiã de ensinamentos de grande valor para todos nós, e certamente
filósofa em sentido metafísico profundo. Estou falando de Emilie Cady, médica
homeopata e escritora metafísica americana que viveu entre 1848 e 1941.
Emilie Cady escreveu um belo artigo
inicial cujo sentido se inspira no salmo 91, no qual está a ideia de “morada do
Altíssimo” ou “esconderijo do Altíssimo”. Podemos citar o belíssimo versículo 4
deste salmo que pode ser traduzido como: “Ele te cobrirá com Suas penas, e sob
Suas asas encontrarás abrigo; Sua verdade é escudo e couraça.”. Podemos
interpretar em sentido esotérico ou ocultista como um estado mental em que
estaremos sob a guarda Divina, sendo as asas um poder que eleva e nos coloca
neste local Divino e Seguro. Mais adiante também no versículo 9: “Pois
disseste: “O Eterno é meu refúgio”; fizeste do Altíssimo tua morada.”(estas são
traduções aproximadas cotejadas com o hebraico). Nos dando, então, a ideia de
que podemos habitar no “Altíssimo”. O artigo que a Emilie escreveu tem o
seguinte título: “Finding the Christ in Ourselves” ou “Encontrando o Cristo em
nós mesmos”.
Neste contexto o Cristo designa a
Divindade em cada um de nós, o que toca esta crença profunda e importantíssima,
de que dentro de cada ser humano existe algo plenamente puro e Divino,
entretanto trata-se de algo, na maior parte dos casos, em estado de potência,
isto é, ainda não manifestado. Exemplarmente, ao olhar uma semente podemos
entender que ali está todo o potencial do que poderá vir a ser uma árvore.
Assim o próprio termo ocultismo encontra sua significação como o ser humano
oculto ao próprio ser humano, ou ainda uma essência que habita no âmago do ser
humano, na qualidade de um modelo a ser desenvolvido, ou um tesouro ainda
encoberto e desta forma em estado latente. Justamente o termo esoterismo também
significa este algo interno e oculto. Mas não devemos pensar necessariamente
oculto como dentro do corpo físico humano, a tradição ocultista pensa que esta
essência está ancorada no corpo físico mas não está plenamente no corpo físico.
Pois trata-se de uma espécie de região superior, é um local especial, algo como
um céu próprio, cada ser humano neste sentido carrega com sigo o seu céu ou
paraíso, mas também o seu inferno, entendido como decadência e ignorância, tudo
isso em sua própria constituição. Quando estudamos a fundamental metáfora da
escada Divina, esta subida ao Sagrado é uma subida a uma região que faz parte
de nós mesmos. A propósito, em consonância com estes pensamentos, está o
interesse e a proposta da Emilie neste seu artigo inaugural. Procurando nos
ensinar a subir os degraus que nos levam a “Morada Secreta do Altíssimo”.
Vejamos um pouco das palavras da própria Emilie Cady, em um de seus livros com
o mesmo tema:
“Quem quer que sejas, tu que lês estas
palavras — onde quer que estejas no mundo, seja sobre um púlpito pregando o
evangelho, seja no mais humilde lar, buscando a Verdade para manifestá-la numa
vida mais doce, mais forte e menos egoísta —, saiba, de uma vez por todas: não
és tu quem busca a Deus, é Deus quem te busca.
Aquilo que sentes e desejas como uma
manifestação mais plena é a própria Energia Eterna — a que sustenta os mundos
em suas órbitas — impulsionando-se através de ti para vir à expressão mais
completa.”(Esta é uma tradução própria).
Este trecho pertence a obra cujo título é
Lessons in Truth ou “Lições sobre a Verdade”. E está na Nona Lição que se
chama, Encontrando o Lugar Secreto. Aqui podemos ver que Emilie Cady se dirige
a todos, isto é, sem exceção, dizendo que existe uma força interna especial
querendo se manifestar, entretanto, como ela procura explicar, nós precisamos
nos colocar em certas condições para entrarmos em contato que essa dimensão
espiritual própria.
Neste ponto deste livro ela irá explicar a
importância do “entrar no silêncio”, contudo é preciso discernir que ela se
refere a um “silêncio mental”, ou a cessação de atividades intensas e
desgovernadas em nossas mentes. Neste tipo de estado podemos entrar em uma
espécie de comunhão com este algo essencial dentro de nós mesmos, e é nestas
circunstâncias que a chamada “voz interna fala”. A aparente incoerência entre
“silêncio mental” e “voz interior” é realmente apenas aparência, pois o
silêncio da mente permite que algo interno se expresse, no entanto de uma forma
muito diferente da fala humana. Mais do que uma teoria a ser exposta, esta
ideia é uma proposta de prática mística, cujo objetivo é que cada indivíduo
tenha a sua vivência. Seguindo este raciocínio, certamente sempre existirão
leis gerias que regem a realidade e são as mesmas para todos os caso ao longo
do tempo. Ou mesmo quem sabe fora do tempo. Mas cada um de nós precisa fazer o
seu caminho de descoberta que será muito particular, justamente em função das
características de cada um.
Estas ideias que a Emilie Cady nos traz
são as mesmas dos ensinamentos orientais, como encontramos, por exemplo, em
nosso querido Swami Vivekananda. Talvez a distinção esteja no fato de que a
Emilie traz uma outra linguagem e enfoque prático, diferenciados. Contudo a
ideia e o valor do silêncio da mente é a mesma. Pois não se trata de uma
invenção da imaginação humana, mas de descrever leis naturais que regem a mente
e tocam o que está imediatamente além desta. Enfatizo que não considero a mente
humana um problema, pois ela é um instrumento e uma parte da realidade. A
complicação começa a surgir se usarmos esta ferramenta poderosa de forma errada
ou se afirmarmos que, no ser humano, tudo se resume a mente. Eliphas Levi, o
grande ocultista, que nos é bem conhecido e caro em nossos estudos, em seu
famoso Dogma e Ritual da Alta Magia, nos diz claramente que a mente é como um
espelho, que no entretanto, pode estar sujo ou limpo. O espelho com impurezas é
exatamente a mente desgovernada e repleta de atividades que nos atrapalham.
Eliphas nos diz ainda que a luz Divina está brilhando continuamente mas se o
espelho da mente estiver sujo os reflexos desta Luz pura serão distorcidos.
Assim precisamos purificar o espelho ou a mente, para ela refletir a
originalidade da Luz pura e Sagrada.
Mais uma vez podemos observar que cada um
destes grandes vultos da Espiritualidade nos falam a mesma coisa com parábolas
e metáforas diferentes. Não vou aprofundar, mas a grande ocultista Blavatsky,
usa a mesma metáfora do espelho para chegar a mesma conclusão do Eliphas.
Portanto, todos estes ensinamentos visam como devemos proceder para, conhecer,
ajustar e modelar a nossa mente, de tal forma que possamos chegar a
experiências de contato com o Divino.
E é por estas razões que o nosso querido
Antônio Olívio Rodrigues, grande ocultista, fundador da linhagem do Círculo
Esotérico e dos vários Tattwas, junto aos seus companheiros de jornada que não
foram poucos nem sem instrução, decidiram traduzir para nós do inglês a obra da
Emilie Cady, Lições sobre a Verdade, que no entanto foi veiculada em nosso meio
como Curso de Iniciação Esotérica. Decisão e iniciativa maravilhosas, pois
assim nos trouxeram o que havia de melhor sobre esta prática mística fundamental,
que alicerça todo o edifício da espiritualidade, que é o “entrar no silêncio”.
Pratica que concorda com todos os nossos modelos de espiritualidade como os já
citados, Swami Vivekananda e Eliphas Levi. Mas não nos esqueçamos do nosso
querido Prentice Mulfor que determina também a busca do mestre interior,
salientando a prática da concentração que é a porta do silêncio mental. Assim
nossa tríade modelar, Prentice Mulford, Eliphas Levi e Swami Vivekananda
dialogam diretamente com os ensinamentos da Emilie Cady.
Entretanto precisamos salientar que a
época de vida da Emilie Cady não foi exatamente favorável para o universo
feminino, Emilie esteve entre as primeiras mulheres médicas em Nova Yorke, e
ocupou uma posição como escritora decisiva para o chamado movimento New Thougth
ou Novo Pensamento. Emilie foi uma mulher altamente capaz, exemplo para outras
mulheres e claro para os homens também. Entretanto é preciso enfatizar suas
conquistas na qualidade de mulher, pois isto demostra que a competência, o
talento, ou sucesso na espiritualidade, não tem a ver com o gênero sexual. O
Novo Pensamento americano é exatamente uma nova disposição, liberta de travas e
tolices antigas, pensando um caminho espiritual viável para todos. Talvez por
esta razão, ou seja, por esta abertura, tenham surgido grandes expoentes
mulheres neste movimento. Aqui retomamos o discurso platônico e percebemos uma
luta de séculos e milênios! Pois do tempo de vida de Platão até Emilie temos
milênios! Platão buscou descrever esta imagem que interpreto como um guerreiro
espiritual, e desde o início de sua reflexão incluiu que isso se aplicava
também a mulher como uma guerreira verdadeiramente capaz. Assim vejo Emilie
Cady, uma guerreira espiritual altamente capaz, cujo combate não é pela
agressão mas pelo amor que regenera. Emilie em seus ensinamentos deixou muito
claro que a ação efetiva é absolutamente necessária para o caminho espiritual.
Ou seja, não devemos esperar que as coisas aconteçam por si mesmas, precisamos
sim lutar para nos colocarmos nas condições ideais. Os antigos filósofos não
ficavam dentro de um escritório escrevendo, eles procuravam a prática da vida e
as experiências para depois poderem escrever algo de valor.
Neste sentido, a oração ou o entrar no
silêncio são atos importantíssimos, mas um viver cotidiano que esteja em acordo
com estes atos mentais é absolutamente necessário. Não basta dizer Verdade, é
preciso lutar e proteger a Verdade, como os guardiões tanto homens como
mulheres. A Harmonia deve ser conquistada, pela persistência em ser correto. O
Amor é o próprio exercício que inclui o outro, ao invés de separar, que
respeita e acolhe, ao invés de criticar e humilhar, e por si mesmo é uma
prática difícil e desafiadora. A Justiça é a reunião de todas as virtudes
comentadas aqui pois deve ser entendida como o ato perfeito. Quem poderia
realizar tudo isso que não guerreias e guerreiros espirituais? Bendito seja
todo este exército de sábios e sábias, mão forte e lutadora que realiza a
espiritualidade. Cada movimento de superação exercido por estas pessoas
concorre para a nossa própria evolução, são partes de nós, e nós seus
continuadores.
Que a Verdade se faça a partir de dentro
de cada um de nós, tal qual um Sol misterioso e oculto que nos ilumina de
dentro! Que esta Luz, bela, correta, benéfica, sagrada, nos inspire os atos
mais nobres, que são efetivamente a Justiça sobre a face da Terra!
O Ato Justo Regenera.
Celebremos então, este aniversário de 99
anos do Tattwa Nirmanakaia, exaltado todos os esforços por um mundo iluminado
pelo Sol da Verdade. E em especial pela colaboração da Emilie Cady, que nos
chegou através da iniciativa do Antônio Olívio Rodrigues e seus companheiros de
jornada.
Rafael Wainstok, Rio de Janeiro,
18/10/2025.
Presidente do Tattwa Nirmanakaia.

Comentários
Postar um comentário
Gostou do texto?
Comente e compartilhe